Em um relatório publicado em 2023, os especialistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apontaram pela primeira vez uma relação entre as fortes precipitações observadas na região que engloba o Rio Grande do Sul desde a década de 1950 e as alterações climáticas provocadas pela ação humana.
Segundo a pesquisadora Thelma Krug, vice-presidente do órgão entre 2015 e julho de 2023, a constatação é apenas reforçada pelas fortes chuvas e a subsequente tragédia que afeta o Estado desde a semana passada.
Os últimos eventos “de certa forma confirmam algo que estamos dizendo há tempos: que, para além das variabilidades naturais que levam aos eventos extremos, existe uma contribuição ou influência humana”, afirma a matemática, que hoje atua como presidente do Comitê de Direção do Sistema Global de Observação do Clima, à BBC News Brasil.
Ainda segundo Krug, apesar da chamada ciência da atribuição climática – que estuda o impacto da atividade humana na probabilidade de ocorrência de fenômenos específicos – ser ainda muito nova, as relações respaldadas pelo IPCC indicam que fortes precipitações como as observadas atualmente podem se tornar mais recorrentes.
“Infelizmente, acredito que há uma probabilidade muito grande de que esses eventos voltem a ocorrer de uma forma mais frequente e intensa”, diz.
O IPCC é um grupo de cientistas definido pelas Nações Unidas que monitora e avalia a ciência relacionada às mudanças climáticas.
Em seu relatório, o IPCC aponta a contribuição humana para o aumento das chuvas na região chamada de Sudeste da América do Sul (SES), que engloba não apenas o Rio Grande do Sul, mas também outros Estado da região sul do Brasil e algumas áreas de nações como Argentina e Uruguai.
A SES é a única que engloba o Brasil onde o IPCC detectou evidências de fortes precipitações relacionadas à ação humana.
O painel classifica sua conclusão como de “baixa confiança”, mas segundo Krug esse é o maior nível de evidência disponível atualmente para a região devido à dificuldade dos cálculos envolvidos.
Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e colaboradora de alguns dos relatórios do IPCC, também vê fortes indícios da influência das mudanças climáticas provocadas pelas atividades antrópicas nas chuvas que provocaram 83 mortes e afetaram 345 dos 497 municípios gaúchos.
Segundo a ecologista membra da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o Rio Grande do Sul sempre foi o ponto de encontro de sistemas tropicais e sistemas polares, o que cria um padrão que inclui períodos de chuvas intensas e outros de seca.
E a tendência é que essa alternância continue se repetindo, mas com cada vez mais intensidade.
“Essa é uma região onde vamos viver muito mais extremos, segundo os modelos climáticos”, diz a especialista.
Transformação dos biomas
As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul atualmente podem ser explicadas por uma conjunção de fatores de risco, entre eles uma massa de ar quente sobre a área central do país, que bloqueia a frente fria que está na região Sul e faz com que a instabilidade fique sobre o Estado, causando chuvas intensas e contínuas.
Aliado a isso, o período entre o final de abril e o início de maio de 2024 ainda tem influência do fenômeno El Niño, responsável por aquecer as águas do Oceano Pacífico, contribuindo também para que áreas de instabilidade fiquem sobre o Estado.
Essa combinação de diversos fatores de uma única vez é considerada rara pelos especialistas.
No entanto, segundo Mercedes Bustamante, a maior frequência desses “riscos compostos” é apontada na compilação de dados sobre mudança climática do IPCC.
“Há uma convergência de variáveis diferentes que atuam em sinergia e ampliam esse fator de risco”, diz. “Muitas das discussões sobre preparação se referiam a riscos de forma isolada, mas precisamos olhar para os efeitos em cascata e os riscos de forma integrada.”
Bustamante explica que o desmatamento em larga escala do Cerrado nas últimas décadas aumentou a temperatura superficial e reduziu a quantidade de evapotranspiração, ou a devolução da água à atmosfera, na região central do país.
Com menos retorno de umidade, a atmosfera fica mais quente e seca. Em convergência com o El Niño, é essa massa de ar quente que está bloqueando e mantendo a área de instabilidade sobre o Rio Grande do Sul.
“Há um fenômeno regional, que é o El Niño, mas também uma questão associada à transformação dos nossos biomas”, diz.
Ao mesmo tempo, essa mesma massa de ar quente bloqueia os chamados ‘rios voadores’ da Amazônia, uma espécie de curso d’água invisível que circula pela atmosfera. Trata-se da umidade gerada pela Amazônia e que se dispersa por todo o continente sul-americano.
Se esse curso d’água encontrasse um ambiente menos seco na região central do Brasil, parte dele precipitaria ali. Mas nas circunstâncias atuais a umidade é obrigada a desviar pelas bordas da massa quente e úmida, de forma que esbarra nos Andes e é canalizada para o sul do país.
“Tivemos frentes frias que não conseguem ‘subir’ e massas de ar úmido que não conseguem se distribuir para o Brasil central e ‘vazam’ pelos lados”, resume.
Segundo a pesquisadora, esse contexto tornou as chuvas registradas na última semana mais extremas e disseminadas do que as que abateram o Rio Grande do Sul em setembro de 2023.
‘A influência humana aqueceu todo o sistema climático’
Ao mesmo tempo, segundo Thelma Krug, há cada vez mais evidências na ciência que relacionam a mudança climática a períodos mais duradouros e intensos de El Niño.
“Já vimos o El Niño se estendendo por um período mais longo de tempo no ano passado”, diz.
“E agora temos uma composição de dias muito quentes com implicação na temperatura superficial do oceano, cenário que tem uma influência em toda essa modificação com relação às chuvas.”
Segundo a matemática, é bastante complexo fazer associações entre ações humanas e fortes precipitações – diferente das ondas de calor, que são mais facilmente ligadas às mudanças climáticas provocadas pelas atividades antrópicas.
“Mas o que sabemos de inequívoco é que a influência humana aqueceu todo o sistema climático: aqueceu o oceano, aqueceu a atmosfera, a criosfera. Ou seja, todos os elementos da biosfera terrestre”, diz.
“E é impossível não imaginar que esse aquecimento que atingiu o sistema climático na totalidade não vai ter consequências em várias áreas.”
‘Voltar a viver de maneira diferente’
Krug e Bustamante são categóricas ao afirmar a necessidade de ações de adaptação adequadas aos novos modelos climáticos para evitar novas tragédias em casos de futuros eventos extremos.
“O Brasil tem uma necessidade de ampliar sua rede de monitoramento de dados ambientais”, destaca a professora da Universidade de Brasília.
Segundo Mercedes Bustamante, o mapeamento de risco elaborado pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e criado após a tragédia climática que deixou mais de 900 mortos na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011, precisa ser revisitado.
Para Thelma Krug, o planejamento deve ser feito a níveis federais, estaduais e municipais e com o apoio de parcerias público-privadas.
“A periodicidade desses eventos no Rio Grande do Sul e a intensidade do que está acontecendo atualmente – que possivelmente pode até ser um dos maiores do país – é preocupante e requer que tomemos ações não só para retomar a vida, mas para voltar a viver de maneira diferente”, diz.